O
homem com uma cadela morta na mão ainda está ali. Eu não consigo acreditar que
ninguém ainda tenha tirado aquele homem dali. Mesmo depois de tanto tempo
segurando o corpo da cadelinha ninguém parece ter se dado conta de que isso já
se tornou algo repulsivo, e discretamente compulsório. Ele não foi nem sequer
tirado para dançar.
Na
primeira vez que o vi, a cadela ainda parecia estar viva nos seus braços. Mais viva
do que os braços artificiais daquele homem irremovível, diga-se de passagem.
Depois de diversas vezes que eu passei por aquele lugar, e vi que o homem ainda
permanecia ali, e na mesma posição, cheguei a pensar que ele era uma estátua.
Uma homenagem a ele mesmo, e à cadelinha, já tão velha que estava morta nos
seus braços pobres, artificiais e carnívoros. E hoje eu já tenho absoluta
certeza, uma das poucas que ainda cultivo, nessa vida tão exageradamente
esparramada e desgastante, de que olhar aquele homem parado segurando a cadela
morta se tornou uma obsessão na minha vida.
De
fato, eu já não devia nem me preocupar mais com isso, se estão vivos ou se são
estátuas da vida, como mencionei ter desconfiado. Mas, todos os dias, ao invés
de desviar pelas ruas festivas que me aproximam do insuportável centro da
cidade, eu acabo sempre passando pelo lugar onde ele fica parado. É como se ao
invés de segurar a cadela morta nos braços ele a segurasse nos lábios.
Eu
cheguei até mesmo a sonhar com a cadela que ele segura. Ela se aproximou de mim
já ofegante, e deitou na minha barriga. De alguma forma, eu sabia que ela
sempre tinha sido avessa a interações com desconhecidos, mesmo que
desconhecidos em sonho. Mesmo assim, bem lentamente, eu fui encostando a mão
nas costas dela. Ela me olhou então, como se eu não devesse ter feito aquilo.
Mas permaneceu imóvel. O mais absurdo desse sonho foi eu ter me sentido mais
íntimo da cadela depois que ela parou como uma esfinge deitada sobre a minha
barriga.
Por
alguns segundos, ou meses, ou dois anos e meio foi assim, a minha barriga não
era mais a minha barriga, mas sim as costas da cadelinha naquele sonho. A
cadelinha que eu vejo aquele homem segurar nos braços, sempre parado no mesmo
lugar. Respirei fundo, ainda com a mão na barriga, e enquanto ia acordando
desse sonho ainda parecia que a cadelinha estava respirando encima de mim, ao
invés de morta nos braços daquela estátua viva.
Escuto
o vento arrastando o lixo de propagandas impressas para debaixo de um céu de
nuvens paradas. A estátua viva da minha vida ainda está ali. Debaixo de um céu
que não parece fazer parte da mesma imagem que coloca em movimento grotesco o
escarcéu de papeis, anúncios, tabloides, e todos os tipos de folhas secas, que
nem mesmo uma árvore de terreno baldio poderia imaginar.
Essas
árvores conhecem bem a tragédia das suas raízes, não necessitando de recursos
persuasivos como agir tal e qual uma flor pisada. Elas sabem que as flores se
arrancam pela raiz.
Enfim,
era um céu de nuvens estáticas, hipnotizadas por sombras de papel que rosnam,
mas não rasgam. Num movimento de fumaça baforada eu fui me afastando do maldito
vulto que eu não deveria nem mais ver, mas que constantemente enrola os braços
ao redor do meu pescoço. E quando ele faz isso dançam esqueletos com tremores
de carne.