“Ai!”, grita o sujeito,
que cumpre também a função de interlocutor no impasse entre estesia e
anestesia que o texto “Sem anestesia” empreende. Um interlocutor que recusa
todas as propostas do interlocutário para sanar o motivo do grito: “está
preparada?”, “tem certeza que não quer anestesia?”. O afastamento do enunciador
em relação à enunciação potencializa a voz que emite os “ais”. E de fato essa é
uma das únicas vozes que escutamos nesse diálogo. Através das repetições há uma
demonstração de convicção por parte do interlocutor em negar a anestesia, uma
disposição para o querer sentir dor, estabelecendo assim um percurso novo para
a interjeição “ai”. Temos assim o programa narrativo de uso, do sujeito que
quer ser operado, em relação a um programa narrativo de base, do sujeito que
quer sentir dor. Se pensarmos no título do texto “Sem anestesia”, o “Ai” estabelece
no discurso uma isotopia hospitalar de operação cirúrgica, onde os corpos são
parcial ou integralmente anestesiados, impedindo o contato sensorial com as
regiões que serão operadas. Mas, no desenrolar do diálogo, marcado por suas
repetições e prolongamentos entoativos, o “ai” reforça uma relação de conjunção
vivida pelo sujeito/interlocutor, que quer a estesia (“anestesia não!”),
parecendo ser esse o objetivo da operação a que se submete. No entanto,
finalizando o percurso, a operação semântica que a linguagem sofre (e realiza)
sobre a interjeição “ai” não resolve o impasse entre a estesia e a anestesia
representado pelos actantes da letra. Isso é sugerido na conclusão do texto “acabou,
viu como não doi?/ ai!”.
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